domingo, 15 de julho de 2018

Spectrum


Um clássico psicodélico
Disco gravado em 1971 por uma obscura banda de Friburgo vira cult na Europa, onde colecionadores pagam até US$ 2 mil pelo LP


O que havia restado para o funcionário público aposentado José Luiz Caetano, 49 anos, era apenas uma fita cassete, que ele ouvia em suas viagens de carro pela serra. ''Chorava de alegria e tristeza. Sentia um arrepio ao ver a amplitude do trabalho que tínhamos feito. E tudo se perdera no vento, jogado em alguma prateleira'', diz José Luiz. Na tal fita estavam as músicas do disco Geração bendita, gravado em 1971 com sua banda Spectrum, formada por amigos beatlemaníacos de sua cidade, Nova Friburgo. Sem repercussão alguma em sua época, o trabalho acabou vingando só 30 anos depois, por vias tortíssimas: depois de virar raridade, cult mesmo entre colecionadores europeus, Geração bendita foi relançado em outubro de 2001 em caprichada edição de vinil, numa tiragem limitada, pelo selo alemão Psychedelic Music. Mais: quem quiser comprar um LP original de 1971, em bom estado, tem que desembolsar até US$ 2.000.

Saudado na Alemanha como uma pérola do rock psicodélico sul-americano, o disco relançado vendeu toda a tiragem de 410 cópias em uma semana (outras 40 tiveram que ser guardadas para os clientes da internet). Em abril, Geração ganhará sua primeira edição oficial em CD, também na Alemanha.

''O tempo ficou curto e a cabeça pequena'', diz José Luiz, que, com toda a satisfação, deixou a pacata vida de lado e hoje vive em meio a uma frenética troca de e-mails e telefonemas com representantes de selos fonográficos e colecionadores no exterior. Em 1998, ele estava completamente desanimado, depois de tentar promover uma reunião da banda, que rendeu apenas uma edição caseira do disco em CD. Tudo indicava que se perderiam na memória as músicas, feitas para a trilha sonora do inacreditável Geração bendita, anunciado como ''o primeiro filme hippie brasileiro'', feito em ''uma comunidade hippie autêntica''. Até que um dia o músico foi procurado pelo colecionador Luiz Antônio Torge, que mantém um site com capas de discos brasileiros raros, o Rato Laser.

Paulada - ''Há uns oito anos, um peruano que mora em Burbank, nos Estados Unidos, me enviou uma lista de discos brasileiros que procurava. No final da lista, havia um tal de Geração bendita, que ninguém conhecia'', diz Torge. Um amigo conseguiu então para ele a obscura bolacha psicodélica. ''Escutei e foi aquela paulada. Ele não perde para nenhum baita disco americano ou europeu do mesmo estilo.'' O colecionador só conseguiu chegar a José Luiz por intermédio do diretor do filme, Carlos Bini, o único nome completo na contracapa do disco original, que fora lançado pelo extinto selo Todamérica, especializado em cantores do rádio.

Logo a descoberta chegou a Thomas Hartlage, do Psychedelic Music, em uma fita enviada por Torge. ''Fiquei tão impressionado com o som e com as composições que passei um ano tentando comprar o LP original. Por fim, consegui uma cópia no Brasil, pela qual paguei US$ 1.500'', diz Hartlage. E a fama de Geração bendita se espalhou. ''Ele é uma jóia da música psicodélica'', elogia Hans Pokora, autor da série de livros Record collector dreams, que compila capas de raridades roqueiras do mundo inteiro. ''Além de ser ótimo, ele é raro também, o que torna a obra ainda mais cultuada'', acrescenta Luiz Antônio Torge. ''E o fato de as músicas não serem covers de bandas da Europa ou Estados Unidos deixa os colecionadores loucos.''

Ouvir os poucos mais de 29 minutos do Geração surpreende qualquer roqueiro, até o mais experimentado. Apesar do som precário (os instrumentos eram de terceira mão e as novas cópias do disco tiveram que ser tiradas de um LP, já que as fitas master desapareceram), trata-se de um excelente disco de rock, com ecos do psicodelismo de Jimi Hendrix, o peso de Cream e Steppenwolf (a grande paixão da banda) e das impecáveis harmonias vocais de Simon & Garfunkel e The Mamas & The Papas. As guitarras falam alto em faixas como Quiabos (nome do sítio onde vivia a comunidade hippie do filme), Pingo é letra e Trilha antiga.

Viola e guitarra - Há também belas baladas, só com as vozes dos integrantes e o acompanhamento de uma viola caipira (substituindo o violão de 12 cordas, inacessível para os garotos), que José Luiz Caetano comprou em 1970 e guarda até hoje. Entre elas, Mary you are, Tema de amor, Mother nature e Maria imaculada. A faixa mais psicodélica mesmo é Concerto do pântano, com a combinação da viola com slide e guitarra com efeito wah-wah. O hino hippie A paz, o amor, você encerra o disco em grande estilo - nada a dever, por exemplo, aos Mutantes de Jardim elétrico.

Produzido por Carl Kohler, dono do Quiabos, o filme Geração bendita era a grande oportunidade que o Spectrum tinha de entrar na mídia. ''Uma história nunca vista no Brasil! Uma geração simples, divertida, humana, bela e inteligente! Você vai fundir a cuca, bicho!'', anunciava o trailer do filme, que originalmente seria um documentário, mas acabou virando ficção com a entrada no projeto do diretor Carlos Bini. ''O filme não é nenhuma obra-prima, mas retrata uma época'', diz hoje José Luiz Caetano. Bondade dele: Geração bendita poderia ser exibido hoje em dia como uma curiosidade trash, com cenas de hippies queimando um aparelho de TV, tocando flauta à beira do rio, queimando fumo e destroçando com fúria um leitão assado.

Com interpretações constrangedoras e um fiapo de roteiro, centrado na história de um burocrata que larga tudo para viver com os hippies que acampam na praça principal de Nova Friburgo, Geração bendita, o filme, tem uma cena antológica, em que todos tomam banho nus num rio, no qual um treslocado vai derramando um balde de tinta para colorir a água. ''Alguns dizem que a minha bunda está ali, mas eu não me vejo'', brinca José Luiz, que jura não ter ido fundo na onda daquela época. ''Minha droga era a música'', assegura.

Big Boy - Proibido a princípio pela Censura, Geração bendita acabou sendo lançado só em 1972, e em poucos cinemas, com o título de É isso aí, bicho!. E nada aconteceu. Frustrados e sem empresário, os músicos do Spectrum se separaram - isso, apesar de terem recebido elogios e uma convocação de um de seus ídolos, o radialista Big Boy, do Baile da pesada. Com nova formação, chegaram a tentar a sorte em boates de Ipanema, numa onda meio Cream. Mais tarde, com a adesão do vocalista (já falecido) Wirley, embarcaram numa onda Led Zeppelin. Nessa, gravaram a trilha de outro filme de Bini, Guru das 7 cidades. Depois acabaram mais uma vez, só que definitivamente.

Com o fim do sonho roqueiro, José Luiz se casou, foi trabalhar como professor de shiatsu e teve dois filhos. Mais tarde, um concurso o levou a ser funcionário público. No meio tempo, cursou dois anos de Direito, que o ajudaram bastante na hora de se meter no complicado trâmite legal para a liberação dos direitos do disco, quando do convite da Psychedelic Music para o relançamento. Foi uma longa peregrinação que envolveu todos os músicos de Geração bendita ainda vivos: o baterista Fernando (que trabalha com informática no Rio) e os guitarristas Sérgio (desenhista da construção civil em Friburgo) e David (pecuarista em Bom Jardim). O baixista do disco, Toby, morreu no começo dos anos 90 num acidente de carro.

''O Geração ainda é um disco atual, em letra e música'', acredita José Luiz, que montou um site do Spectrum e trabalha agora pelo seu relançamento em CD no Brasil. Ele sonha inclusive fazer um videoclipe, com cenas do Geração que estão em poder de Carl Kohler, hoje recluso e desiludido com o meio cinematográfico. Trinta anos depois, o músico continua no clima paz-e-amor do filme - em sua opinião, o sonho não acabou e os anos 70 sequer começaram. ''O objetivo final do homem tem que ser o humanismo'', prega José Luiz.

Jornal do Brasil | 14 de Fevereiro de 2002
por Silvio Essinger

1971 | GERAÇÃO BENDITA

01. Quiabo's
02. Mother Nature
03. Trilha Antiga
04. Mary You Are
05. Maria Imaculada
06. Concerto do Pântano
07. Pingo é Letra
08. 15 Years Old
09. Tema de Amor
10. Thank You My God
11. On My Mind
12. A Paz, Amor, Você

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