terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Cabine C


Uma joia rara do Post Punk nacional. Adorado pelos darks de ontem, pelos góticos de hoje e pelos mais atentos apreciadores do Post Punk brasileiro, o Cabine C é considerado um dos grandes nomes do chamado "dark nacional" e, na minha humilde opinião, um dos pioneiros do Gótico Sul-Americano.

Ciro Pessoa - o criador do Cabine C - foi um também um dos fundadores do Titãs, grupo no qual permaneceu até momentos antes de seu primeiro lançamento oficial, em 1984. São dele algumas composições clássicas do grupo, como Sonífera Ilha e Homem Primata. Ciro decidiu sair do Titãs pois não gostava dos rumos "Tropicalistas" e "Reggae" que a banda estava seguindo. Sua intenção era criar um grupo mais "Rock".

A formação inicial contava com a esposa de Ciro, Wania Forghieri (teclados), Edgard Scandurra (guitarra), Charles Gavin (bateria) e Ricardo Gaspa (baixo), que havia substituído Sandra Coutinho - que passaria a se dedicar unicamente ao grupo Mercenárias. Essa formação chegou a gravar uma demotape, apresentando uma sonoridade Post Punk mas com fortes acentos Pop. É um item raríssimo, com faixas nunca lançadas oficialmente como "O Lado Bom da Bomba", "Inundação de Amor" (depois regravada pelo Ira) e "Fim de Serafim" (poema musicado de Oswald de Andrade). Com músicos de reconhecido talento, o grupo fez alguns shows considerados inesquecíveis em São Paulo, ganhando certa notoriedade no circuito alternativo.

O problema era que Scandurra também tocava no Ira, uma banda que estava explodindo no cenário comercial. Sendo assim, provavelmente sofrendo alguma pressão, ele abandonou a "aventura underground" do Cabine C. Gaspa também saiu do grupo, também convidado a tocar no Ira. E Charles foi pro Titãs.

Após esse baque, o Cabine C ficou um bom tempo inativo, buscando uma reformulação. Mas após um longo hiato, a banda renasceu das cinzas com sua formação definitiva: Ciro Pessoa (voz e guitarra), Wania Forghieri (teclados) e as novas integrantes Anna Ruth (baixo) e Marinella 7 (bateria). E o Post Punk do grupo assumiu de vez sua identidade: Sombrio, em algum lugar entre o desespero e a delicadeza.

Ciro se inspirava em poetas como Edgar Allan Poe, Baudelaire e Arthur Rimbaud, para produzir uma poesia existencialista e desoladora, flertando com um certo niilismo. A sonoridade do grupo remetia a nomes como Siouxsie & The Banshees, X-Mal Deutschland, Cocteau Twins e a Coldwave francesa, mas com uma alma própria. Esses ingredientes, é claro, agradaram em cheio os darks da época e a banda logo ganhou essa "tag" - que, como tantos outros, procuraram evitar.

Não demorou e o grupo ganhou muitos admiradores, tornando-se um dos favoritos dos porões paulistanos. Dessa forma, surgiu o convite da recém criada gravadora RPM Discos (idealizada pelo popular grupo RPM) para finalmente lançar um álbum do Cabine C. Refletindo sobre a tensão de entrar no circuito comercial, Ciro disse para a Bizz: "Vamos ser jogados aos leões, não sabemos se vamos domá-los ou ser comidos".

O nome do grupo (que remetia a cabine de um navio) e a variedade das canções, que pareciam aportar em vários locais, deram até um ar temático ao álbum. "(O disco) percorre um roteiro. Passa pelo Oriente Médio na música que dá título ao LP; Buenos Aires no tango Lapso de Tempo; ou Japão através de Jardim das Gueixas." - disse Ciro Pessoa para a Bizz. Do outro lado, haviam as fortes referências literárias presentes em todo repertório (Edgar Allan Poe e sobretudo a literatura existencialista), resultando em uma obra marcante.


O disco abre com Pânico e Solidão, inspirada no livro "As aventuras de Arthur Gordon Pym", de Edgar Allan Poe. A letra, que também pode ser interpretada como uma metáfora da inevitável decadência humana, é um resumo do espírito do disco e combina perfeitamente com a melodia rasgante e fúnebre.
Em seguida, a minimalista Lapso de Tempo - influenciada pela marcação rítmica do Tango - segue a viagem rumo ao abismo, não perdoa e evoca o memento mori: "O tempo está passando".

Na sufocante Anos, em algum lugar entre X-Mal Deutschland e a Coldwave, sob gritos e ruídos, Ciro, Wania e Anna repetem uma unica frase, a atemporal e inevitável reflexão: "O que eu tenho feito todos esses anos?".

O clima desesperador dá uma trégua com a suave e paradisíaca Jardim das Gueixas. Essa faixa conta com a participação de Akira S (Akira S & As Garotas que Erraram) no Stick, um estranho instrumento de cordas tocado por ambas as mãos. O timbre misterioso confere um clima oriental onírico à canção e quase chega a soar como o Shamisen (espécie de bandolim típico japonês).

O lado A do álbum fecha com a faixa instrumental A Queda do Solar de Usher, baseada no conto homônimo de Edgar Allan Poe. Teclados lúgubres, guitarras ecoantes e a voz lírica de Marinella enaltecem o clima fantasmagórico do som.

O Lado B do disco abre com a potente Lágrimas, uma cativante e enigmática canção de amor. Na sequência, a instrumental Opus 2, transbordando melancolia em um ritmo cadenciado.

A impecável Tão Perto, é tão contagiante que se torna impossível não cantar junto alguns trechos desse relato ambíguo sobre o amor e a vida. Enérgica e dançante é também presença constante nas pistas que conseguem manter um olhar vivo sobre a produção dark nacional. Um dos destaques do álbum, foi também a unica que conseguiu um relançamento. Em 2005, foi remasterizada para a coletânea inglesa de Post-Punk: “The Sexual Life of the Savages”.

A quase valsa Soldadas, é a canção mais crítica do álbum. Mas vai além de um discurso antibélico. Afinal: "A gerra somos nós dois / A guerra são eles três / A guerra está no falar / A guerra não se acaba". Já a existencialista Neste Deserto - outro grande destaque - tem um clima desolador que nos remete a uma viagem solitária em paisagens áridas. Aqui, a sonoridade Coldwave e gótica é levada aos últimos limites, casando com a poesia inspiradamente niilista de Ciro: "Sei que te amo / Mas isso é pouco / Pode ser tudo / Mas tudo é nada". Pois é, nem o amor salva na dura viagem do Cabine C. E o encerramento primoroso se dá com o instrumental delicioso de Fósforos de Oxford, de sabor árabe e lembrando momentos de Dead Can Dance.

O álbum, no geral, foi muito bem recebido pela crítica. O Post Punk sombrio e melancólico do grupo agradava principalmente porque soava autentico e se diferenciava das outras bandas do mercado.

O fato é que o disco não vendeu como o esperado. Cerca de oito mil cópias foram vendidas, pouco para o alto investimento da incipiente gravadora que alçava vôos mais altos. Mas é importante observar que essas marcas foram alcançadas sem uma distribuição eficaz e sem nenhum esquema de divulgação, em um dos casos mais emblemáticos da industria fonográfica brasileira. A RPM Discos foi a falência logo apos essa presepada, gerando uma longa disputa judicial entre seus representantes e Ciro. Esse estresse acabou afetando o Cabine C, que também devido conflitos internos, começou a se desfazer. Marinella e Anna Ruth, deixaram o grupo. Dois argentinos chegaram a substituí-las por um tempo e Ciro se esforçava para lançar algum material novo. Quatro novas músicas chegaram a ser gravadas: "Acidentes", "Sábio Chinês", "Cotonetes Desconexos" e "Nossas Cabeças são Nossos Erros". Mas o segundo disco nunca saiu do papel.

Em uma entrevista, Ciro desabafou: "A verdade é que foi ficando cada vez mais difícil fazer shows, sobreviver. Tudo se concentrava no Rio de Janeiro e lá se você não é do samba você é estrangeiro. E como a cultura carioca dominava (domina) a cidade de São Paulo, nem aqui éramos considerados brasileiros. Fomos nos cansando desta história ridícula, limitada e preconceituosa que é a música no Brasil e nossa resistência no underground foi chegando ao fim."

Com o fim do Cabine C, Ciro ainda se viu envolto em problemas com drogas, o que o fez se afastar da música por um tempo. Manteve carreira de escritor, escrevendo em diversas revistas e, anos mais tarde, seguiu carreira solo, onde tem dois álbum lançados: "No meio da chuva eu grito Help" (2003) e "Em Dia com a Rebeldia" (2010), ambos distantes da sonoridade do Cabine C, mas bons álbuns de Rock em meio ao marasmo musical da música comercial brasileira.

Texto retirado do blog | Goth Songs

1986 | FÓSFOROS DE OXFORD

01. Pânico e Solidão
02. Lapso de Tempo
03. Anos
04. Jardim das Gueixas
05. A queda do Solar de Usher
06. Lágrimas
07. Opus 2
08. Tão perto
09. Soldadas
10. Neste Deserto
11. Fósforos de Oxford

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2 comentários:

Gil velho punk aqualung disse...

Grato por disponibilizar esta raridade.

Carlos Henrique Xavier Endo disse...

"E como a cultura carioca dominava (domina) a cidade de São Paulo..." O paulista culpa os cariocas pelo fracasso de seu pedantismo e esnobismo? O ódio paulistano contra o Rio de Janeiro e contra os cariocas produz escrotices as mais variadas.

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