sábado, 29 de fevereiro de 2020

Detrito Federal


A cena rock de Brasília nos anos oitenta não era formada apenas por nomes como Legião Urbana, Capital Inicial e Plebe Rude. Uma das bandas mais cultuadas dessa época, mas que acabou não alcançando o sucesso nacional do trio citado acima, foi o Detrito Federal. Seu primeiro álbum, "Vítimas do Milagres", lançado em 1987, é um clássico incontestável do punk rock brasileiro.

O grupo nasceu em 1983, de uma discidência do também punk Derrame Cerebral, de onde saíram o vocalista Alexandre "Podrão" Veiga e o guitarrista João Bosco. A dupla uniu forças com a baixista Mila Menezes (que mais tarde integraria o Volkana) e o baterista Paulo César "Cascão".

O primeiro registro do grupo foi na coletânea "Rumores", lançada pelo selo Sebo do Disco em 1985. O Detrito Federal participou com as faixas "Fim de Semana" e "Desempregado". Os outros grupos presentes na compilação foram o Finis Africae, a Elite Sofisticada e a Escola de Escândalos. Esse LP é bastante raro de se encontrar hoje em dia, já que foram prensadas apenas 1.000 cópias do mesmo.

Apesar da boa repercussão do disco, no final de 1985 Mila e Bosco deixam a banda. Seus postos são preenchidos pela entrada do guitarrista Will Pontes e do baixista Paulinho. Ainda como reflexo da ótima impressão causada pela coletânea Rumores, em janeiro de 1986 o Detrito Federal participa do programa Mixto Quente, da Rede Globo, programa esse que era transmitido diretamente das praias do Rio de Janeiro para todo o país.

A participação solidifica a reputação da banda e projeta seu nome para um número maior de ouvintes, ao mesmo tempo em que causa um racha no conjunto, com o vocalista Alexandre Podrão deixando a banda e acusando os membros restantes de "traidores do movimento", já que eles teriam se "vendido para o sistema". Podrão junta-se ao ex-guitarrista Bosco, e juntos montam o BSB-H.

Cascão decide assumir os vocais, e Luciano Dobal vira o titular da bateria. Nessa confusão toda, outro que pula fora do barco é o baixista Paulinho, sendo substituído por Milton Medeiros. Sob a liderança de Cascão, o Detrito Federal faz algumas mudanças em seu som, tornando-se menos radical, deixando de lado o visual punk e aproximando-se da sonoridade dos grupos de Brasília que estavam estourando no Brasil naquela época, como Legião, Plebe e Capital.

O line-up é novamente alterado, com a entrada de Simone Death (ou Si Young ,aquela mesmo que, anos mais tarde, ficaria famosa em todo o Brasil como Syang no programa Casa dos Artistas, do SBT) e Mauro Manzolli nas guitarras e Deborah Derwish na bateria. Finalmente estabilizados, assinam com a Polygram e entram em estúdio para gravar o seu disco de estreia, produzido pelo baterista dos Titãs, Charles Gavin, e batizado como "Vítimas do Milagre".

Lançado em 1987 e contando com uma capa pra lá de provocativa, o play apresenta um som vigoroso e agressivo, com canções simples construídas sobre três acordes. O principal destaque do LP são as letras, repletas de ironia e inteligência. O álbum abre com a grudenta "Se o Tempo Voltasse", cuja ótima letra possui a clássica frase "se o seu pai pudesse escolher, você acha que o filho seria você?". De arrepiar quem viveu naquela época e tinha o disco como uma das trilhas sonoras da sua adolescência.

O play segue com "Adolescência", poema de Paulo Leminski musicado pelo grupo. Ouvir essa faixa hoje em dia, quando somos bombardeados por coisas horríveis como Fresno e NX Zero, mostra o quando a qualidade dos grupos daquela época possuíam muito mais qualidade que aqueles consumidos pela juventude atual, infelizmente.

"O Vírus do Ipiranga" é uma pérola do rock brazuca, um petardo cuja letra faz uma crítica feroz e certeira ao Brasil, tendo como base a letra do hino nacional. Ouça e delicie-se! "Sun City" tem um bom riff de Syang e um andamento mais funkeado, enquanto "Bloco K" é o retrato fiel dos jovens brasilienses do período.

O lado B abre com "Último Grito", cadenciada e com influências da new wave. A faixa título une o punk com algumas características country, e, mais uma vez, a letra merece destaque. A agressiva e chiclete "Tá Com Nada" é um dos grandes destaques do disco, e ouvir sua letra imaginando que situações e personagens atuais poderiam substituir os citados é um retrato, infelizmente verdadeiro, da realidade do nosso país. O disco fecha com a pauleira de "Angra (A Dança das Ogivas)", que critica as usinas nucleares instaladas pelo governo militar na cidade de Angra dos Reis.

"Vítimas do Milagre" alcançou boas vendas - cerca de 50 mil cópias -, e levou a banda a tocar em programas de repercussão nacional, como Perdidos na Noite e Clube do Bolinha. Infelizmente, até onde eu sei o álbum não foi relançado em CD, estando disponível apenas através do vinil original de 1987. Se você se interessou, indico pesquisar em sites como o Mercado Livre, onde volta e meia o LP dá as caras.

Apesar da boa receptividade do disco, a Polygram dispensou o grupo, o que gerou uma nova debandada geral. Simone Death virou Syang e formou o P.U.S., Milton Medeiros foi para o Rio estudar produção de discos na escola de Antônio Adolfo e Deborah foi morar nos Estados Unidos. Mesmo assim, o Detrito Federal manteve-se ativo com inúmeras formações ao longo dos anos, e chegou a lançar mais dois discos (o EP "Guerra, Guerrilha, Revolução" em 2002 e o CD "1983", em 2005), ambos com momentos interessantes, mas inferiores à sua estreia.

Texto | Ricardo Seelig

1985 | RUMORES
(Coletânea)


01. Escola de Escândalo | Complexos
02. Finis Africae | Van Gogh
03. Elite Sofisticada | Fuga
04. Detrito Federal | Desempregado
05. Finis Africae | Ética
06. Escola de Escândalo | Luzes
07. Detrito Federal | Fim-de-semana
08. Elite Sofisticada | Sozinho

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1987 | VÍTIMAS DO MILAGRE

01. Se o Tempo Voltasse
02. Adolescência
03. O Vírus do Ipiranga
04. Sun City
05. Bloco K
06. Último Grito
07. Dependentes do Circo
08. Vítimas do Milagre
09. Tá Com Nada
10. Angra (A Dança das Ogivas)

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2005 | 1983

01. Antraz
02. Órfãos da Nação
03. Desempregado
04. Ecos Periféricos
05. Animais
06. Álcool
07. Palestina
08. 1983
09. Alienação e Repressão
10. Digo Não II
11. Brasil

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terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

The Specials


A década de 1970 teve um importante papel na proliferação da música Jamaicana pelo mundo.

Da manifestação ativa do Reggae aos passeios pelo Ska e Dub, a sonoridade original da ilha caribenha era a base para uma centena de bandas que nasciam naquele momento, entre eles o coletivo britânico The Specials.

Formado na cidade de Coventry, em 1977, o grupo trouxe na mistura entre a sonoridade firmada no fim da década de 1960 e as rajadas de guitarras calorosas o mecanismo de alimento para tudo o que representa o registro de estreia do grupo.

Lançado em Novembro de 1979 e contando com a produção de Elvis Costello, o disco brinca com os sons em uma medida que não se afasta do contexto maduro dos versos, trechos melódicos que vão do racismo ao aborto em uma propriedade essencialmente comercial.

Lançado pelo selo 2-Tone, do próprio grupo, The Specials (o disco) seria a base criativa para toda uma sequência de artistas que ocupariam a década de 1980 com os mesmos sons.

Texto | Cleber Facchi

1979 | THE SPECIALS

01. A Message To You Rudy
02. Do The Dog
03. It's Up To You
04. Nite Klub
05. Doesn't Make It Alright
06. Concrete Jungle
07. Too Hot
08. Monkey Man
09. (Dawning Of A) New Era
10. Blank Expression
11. Stupid Marriage
12. Too Much Too Young
13. Little Bitch
14. You're Wondering Now

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quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Sting


JAZZ E POP NA MEDIDA CERTA

Tudo começou no final de 1984. Na época, Sting era famoso por ter integrado o The Police, um trio que fez história por misturar pop, rock, reggae e ska, tudo em um mesmo caldeiro sonoro. Com o fim do grupo, o cantor e baixista que também era um prolífico compositor, resolveu se jogar de cabeça em sua carreira solo. O músico tinha em mente uma sonoridade completamente diferente de sua antiga banda. Sting queria algo mais rebuscado, com uma sonoridade mais elaborada e para tanto, viajou em janeiro de 1985 até Nova Iorque a fim de conseguir novos músicos que o acompanhassem em sua empreitada. De inicio, o cantor queria um tecladista realmente bom, que fosse a base do grupo. Um músico que pudesse transitar do pop ao jazz com muita facilidade. Logo lhe indicaram Kenny Kirkland, um pianista e tecladista que havia tocado com jazzistas famosos como Dizzy Gillespie e Elvin Jones. Na bateria foi escalado Omar Hakim, que vinha do fusion, sendo responsável pelas baquetas do grupo Weather Report durante longos anos. Na cabeça de Sting o principal instrumento de solo seria o saxofone, e para comandar o instrumento o cantor convidou Branford Marsalis, jovem saxofonista, que vinha de uma família eminentemente jazzista. Seu pai Elis, era um pianista laureado no circuito de jazz e seu irmão Winton foi diversas vezes apontado como o principal nome da nova geração de trompetistas.

Como Sting resolveu que não tocaria baixo em sua nova banda, recrutou para o instrumento Darryl Jones, Baixista que na época integrava o grupo de Miles Davis. De propósito ou não, o fato é que todos na banda eram negros, eméritos jazzistas e conseguiam transitar por vários estilos com igual desenvoltura. Sting e sua nova trupe viajaram para Barbados, e em sete semanas já havia composto a maioria das canções. Deste modo, em 1º de junho de 1985 chegava às lojas "The Dream of Blue Turtles", o primeiro disco solo do cantor do The Police.

O disco obviamente caiu como uma bomba no meio musical. Sting não tocava seu principal instrumento, o baixo, se limitando uma tímida guitarra base. Além disso, a sonoridade do disco, as letras, os arranjos em nada lembravam sua antiga banda. Tal fato fez muitos fãs antigos torcerem o nariz para o disco, mas em contrapartida, o músico angariou toda uma nova geração de admiradores entusiasmados com seu pop rebuscado e encharcado de jazz.

No geral é um trabalho bem eclético, com faixas mais rápidas e outras mais tranquilas, como se o cantor quisesse ser o Chet Baker do pop. Além de pop e jazz, é notório elementos de música negra, como o soul e o blues, além de algumas poucas influências de seu antigo grupo.

O disco abre com "If You Love Someboy Set Me Free", com seus vocais femininos o fundo, cortesia das fantásticas Dollette Mcdonalds e Janice Pendarvis. Aqui o cantor mostrou um estilo que continuava cheio de swing como fazia com seu antigo grupo, mas mostra também toda sua evolução como compositor e intérprete. O tema fala da escravidão e censura. "Love Is The Seventh Wave" é talvez a única canção que pode lembrar vagamente seu antigo grupo, talvez pela Base levemente reggae ao fundo. "Russians" é uma introspectiva balada onde voz de Sting se sobressai aos arranjos. "Children´s Crusade" tem letra contando a história das crianças que lutavam nas cruzadas. Sting a canta de modo melancólico, e até mesmo o belo sax de Branford consegue soar triste em seu solo. "Shadows In The Rain" é um tema mais rápido, comandado pelo piano elétrico de Kirkland que faz um interessante contraponto com voz de Sting."

"We Work The Black Seam" é uma outra balada composta pelo cantor, que tirou inspiração para o tema em sua infância. "Consider Be Gone", é um canção fantástica, que começa com a voz e o baixo aveludado de Darryl e vai crescendo a medida que o tem se desenvolve. Em seguida temos a faixa titulo que é uma pequena música instrumental. Um verdadeiro tema de jazz, comandado por piano e saxofone. A música foi indicada o Grammy como melhor tema instrumental do ano. Como o próprio Sting declarou mais tarde: "Fiquei embaraçado pela indicação. Aquele tema foi apenas uma brincadeira entre a banda durante um ensaio..." Pode até ser, mas acredito que a brincadeira tenha valido a indicação. "Moon Over Bourbon Street", é a canção preferida de Sting e foi composta após o músico ler "Entrevista com o Vampiro" da autora Anne Rice. A canção tem ares de trilha sonora e uma atmosfera bem cool, comandada pelo baixo fretless de Darryl. "Fortress Around You Heart" encerra o trabalho e é uma das minhas canções preferidas. Um tema que fala eminentemente de amor e relacionamento. É mais uma daquelas canções que começam introspectivas e vão crescendo conforme performance de Sting vai se desenvolvendo.

Embora "The Dream of Blue Turtles" seja um trabalho elaborado por grandes músicos, é também um disco primordialmente feito de canções, onde os arranjos privilegiam as ideias e não o oposto. Das dez canções incluídas no trabalho cinco viraram singles e alcançaram as paradas.

O resultado de crítica e público foi bem superior ao esperado e Sting pôde mostrar o mundo que não precisava de seu antigo grupo pra fazer sucesso.

Uma pena a banda ter gravado somente este disco de estúdio e o ao vivo "Bring On The Night", que saiu logo em seguida, pois o grupo tinha fôlego pra muito mais. De qualquer modo fica um trabalho irrepreensível, elegante e cheio de grandes canções como só um compositor do porte de Sting Sabe fazer.

Texto | Márcio Chagas

1985 | THE DREAM OF THE TURTLES

01. If You Love Somebody Set Them Free
02. Love Is The Seventh Wave
03. Russians
04. Children's Crusade
05. Shadows In The Rain
06. We Work The Black Seam
07. Consider Me Gone
08. The Dream Of The Blue Turtles
09. Moon Over Bourbon Street
10. Fortress Around Your Heart

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1986 | BRING ON THE NIGHT

CD 1
01. Bring On The Night - When The World Is Running Down You Make The Best Of What's Still Around
02. Consider Me Gone
03. Low Life
04. We Work The Black Seam
05. Driven To Tears
06. The Dream Of The Blue Turtles - Demolition Man

CD 2
01. One World (Not Three) - Love is the Seventh Wave
02. Moon over Bourbon Street
03. I Burn for You
04. Another Day
05. Children's Crusade
06. Down So Long
07. Tea in the Sahara

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sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Black Future


O Black Future foi formado por Satanésio, Tantão – seu núcleo – Lui (que logo deixou a banda), Olmar e Edinho em algum momento dos anos 80 (1984?), no bairro da Lapa, no Rio de Janeiro. Lançaram apenas um álbum, mas nada mais era preciso; a história já estava escrita, e nunca poderá ser apagada.

Eu sou o Rio saiu em 1988 pela BMG/Plug. Considerado pela crítica especializada como um dos álbuns do ano, com reportagens entusiasmadas no jornal O Globo, na revista Bizz, videoclipe, incensos e mirras, o disco nasceu, cresceu e morreu no submundo sob os Arcos. Era demais para ouvidos acostumados ao rock de Brasília. .

Produzido por Thomas Pappon (Fellini) e com participações de Edgar Scandurra, Edu K (De Falla), Paulo Miklos e Alex Antunes (Akira S e As Garotas que Erraram), Eu sou o Rio é uma ode ao caos urbano e à demência das grandes cidades, longe, muito longe dos corpos sarados e do eterno verão carioca.

À época do lançamento do disco Satanésio disse em entrevista a O Globo que “No fundo, o nosso trabalho é uma trilha sonora para o Rio”. Sim, o Black Future fez a trilha sonora do Rio, do Rio real, não o de cartões postais; expôs as entranhas da cidade não tão maravilhosa, numa época em que a Lapa não aparecia na TV e não era vista com bons olhos pelas ‘pessoas de bem’.

Eu sou o Rio tem dois pilares básicos de sustentação sobre os quais foi construído: primeiro, musicalmente não segue um padrão. É extremamente experimental, explorando terrenos obscuros do pós punk (Bauhaus, PIL, Wire, The Fall, etc) e do industrial (Einstürzende Neubauten, Clock DVA), mas também abraçando o samba (obviamente em “Eu sou o Rio”), o latente hip hop, enfim, um disco sem amarras; segundo, as letras e a forma de cantar de Satanésio.

Em cada uma das faixas do álbum o vocalista e letrista do Black Future destila veneno em forma de palavras. Irônico, com um humor altamente ácido, Satanésio verbaliza (ele não canta, declama, quase como um poeta do spoken word) o ódio pelas instituições (estado, igreja, família), pela caretice vigente, pelo modus operandi da cidade; mas narra também – com toques de realismo fantástico – as experiências surreais das noites cariocas movidas à psicotrópicos.

Dois anos após o lançamento de Eu sou o Rio e seis após seu surgimento, o Black Future saia de cena e deixava um enorme buraco no rock brasileiro. Nunca, antes ou depois, uma banda conseguiu usar o absurdo como força motriz e criar um álbum tão fragmentado (musicalmente) e tão coeso (liricamente) quanto Eu sou o Rio.

Mais que um panorama do que era o submundo da cidade nos anos 80, ele é uma fotografia em preto e branco da realidade carioca não mostrada nas novelas de Manoel Carlos. O Futuro é Negro, e eles já sabiam disso 25 anos atrás.

Texto | Fábio Bridges

1988 | EU SOU O RIO

01. Introdução: Dança da Chuva
02. Interrupção
03. Sinfonia para um Morto
04. Reflexão
05. Piada
06. Eu Sou o Rio
07. Teatro do Horror
08. No Nights
09. Cartas do Absurdo
10. Bem Depois
11. Thor & Loki
12. Eu Quero Tocar a Lapa

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domingo, 2 de fevereiro de 2020

Ave Sangria


Quatro décadas e meia se passaram entre o lançamento do primeiro álbum, homônimo, da banda pernambucana Ave Sangria, e Vendavais, o segundo disco. O primeiro foi prensado em vinil em 1974. O segundo, em 2019, saiu em plataformas de streaming, depois em CD e, só aí, em vinil, bancado por financiamento coletivo, numa espécie de linha do tempo invertida em que o trabalho mais recente se encontra com o antecessor no exato ponto em que ele termina.

Se, por um lado, a tecnologia atual permitiu ao disco timbres, mixagem e masterização mais modernos, por outro, os elementos que consagraram a banda nos anos 1970 continuam todos lá: os ritmos regionais nordestinos, misturados à guitarra do rock e à poesia aguçada que tornaram a banda um ícone da chamada psicodelia nordestina, ladeada por conterrâneos como Alceu Valença, Flaviola e o Bando do Sol e Lula Côrtes, que lançaram trabalhos semelhantes na mesma época.

“Foi intencional. A gente queria que fosse uma continuidade. Queria pagar esses 45 anos como se não tivessem existido. Dar às pessoas que gostam de nossa música um segundo álbum que fosse continuação do primeiro”, conta o poeta Marco Polo, cantor e letrista da banda. “É como se não tivéssemos sido castrados pela ditadura. Queremos reafirmar que, mesmo 45 anos depois, continuamos vivos e com os mesmos ideais de rebeldia e liberdade”, declara.

O OVO DA AVE

Em 1972, o jovem Marco Polo voltava ao Recife de uma temporada em São Paulo e no Rio de Janeiro, com um punhado de poemas embaixo de braço e um monte de ideias na cabeça. Saiu da cidade para fugir do marasmo, mas encontrou, na volta, a terra natal fervendo e um bando de rapazes dispostos a tocar um som autoral. Assim surgiu o Tamarineira Village, cujo nome alude ao Village, bairro boêmio novaiorquino, e o recifense Tamarineira, povoado por artistas e um hospício.

Este paralelo entre a cultura regional tradicional e as novidades estrangeiras se encontrava também, já naquela época, na proposta musical da banda. “A nossa influência era Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Beatles, Rolling Stones, Led Zepellin e Jimi Hendrix”, enumera Marco Polo. “Pra mim, era natural que o que importasse era que a música fosse boa, ao contrário do Manguebeat, que fez um manifesto para justificar a postura deles”, compara.

Conseguir os discos de música brasileira era fácil. Marco Polo recorda que, desde que era criança, havia na casa dele uma vitrola a manivela que tocava de Nelson Gonçalves a Luiz Gonzaga. Difícil era encontrar os discos de rock. Era preciso esperar alguém voltar de Londres com as novidades, não tão novas na Inglaterra, ou abordar os marinheiros no cais para trazer os discos de fora. “As lojas não importavam os discos de rock, porque achavam que não ia vender”, lembra o músico.

“É claro que, na época, a gente sofreu muita repressão da crítica, mas a gente não ligava a mínima” afirma. Logo, porém, a vocação para desafiar o conservadorismo da época se tornaria marca registrada do grupo. “O Zé da Flauta dizia que, na época, a gente não sabia que estava fazendo história. Mas a gente tinha consciência de que queria provocar”, diz o vocalista, citando o conterrâneo, que tocou com toda a turma psicodélica da época, incluindo a própria Ave Sangria.


OS DENTES DO OFÍCIO

Se o choque causado pela sonoridade do sexteto não era planejado, as letras e o comportamento extravagante do grupo eram um desafio declarado ao status quo, cujo ápice se deu com a música Seu Waldir: “Seu Waldir o senhor/ Magoou meu coração/ Fazer isso comigo, seu Waldir/ Isso não se faz não /Eu trago dentro do peito/ Um coração apaixonado batendo pelo senhor/ O senhor tem que dar um jeito!/ Se não eu vou cometer um suicídio/ Nos dentes de um ofídio vou morrer”.

“Eu namorava uma atriz que trabalhava com Marília Pêra, que estava com uma peça, e fiz a música para o personagem dela, que era muito debochado e irônico. A parte do ‘suicídio nos dentes de um ofídio’ era uma referência a Cleópatra, uma brincadeira”, descreve o compositor. Como a música não entrou na peça, Marco Polo decidiu incluí-la no show, para peitar o machismo pernambucano. “Tinha amigos meus que saíram revoltados: 'Não sabia que o Marco Polo era gay!”, diverte-se.

E ele não era. “Apesar de não ser homossexual, eu me solidarizava perante o machismo e a homofobia. Pernambuco era um lugar muito tradicionalista. A esquerda era preconceituosa e nos marginalizava. Eu tinha uma namorada comunista, e a gente tinha brigas, porque ela dizia que eu era um americanista alienado, porque gostava de rock e fumava maconha”, diverte-se. A direita, então, gostou menos ainda, e mandou recolher o primeiro disco da banda por causa da faixa Seu Waldir.
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Cair nas presas da ditadura foi um duro golpe para o bando de aves ainda no ninho. Excelentes, os instrumentistas da banda acabaram alçando outros voos. O grupo, porém, teve sua trajetória interrompida. Mas as lendas continuaram. “As pessoas saíam à noite pelos bares procurando pelo Seu Waldir, pois achavam que era dono de um boteco”, ri Marco Polo, e garante: “Seu Waldir nunca existiu!”. “Eu gostava de inventar histórias porque era o marketing que tínhamos na época”, admite.

Outra lenda espalhada era a de que o nome da banda tinha sido sugerido por uma cigana, mas, na verdade, ele surgiu de um devaneio do vocalista. “Eu estava pensando numa capa pro disco e pensei num bando de prédios cinzentos, como eu via em São Paulo, e, em cima deles, voando, uma ave toda vermelha, vermelho-sangue, que, pra mim, significa a vida, a liberdade. Ave Sangria é uma ave sangrenta, sanguinária… o pessoal gostou e ficou!”, explica.

AS CINZAS DO OVO

Quarenta e cinco anos se passaram e muita coisa aconteceu entre o céu e a terra. Marco Polo seguiu carreira como jornalista e poeta, com vários livros publicados, e teve composições gravadas por intérpretes como Ney Matogrosso e Elba Ramalho. Três dos membros originais da banda morreram: Ivson Wanderlei, conhecido como Ivinho; Israel Semente Proibida e Agrício Noya, músicos notáveis que, antes de partir, deixaram sua marca na música popular brasileira com outros projetos.

“O Alceu Valença vivia tentando seduzir nossos músicos para tocar com ele. Ele assistiu o show da gente e percebeu essa coisa de eletrificar o baião, e conseguiu fazer também esse trabalho”, recorda Marco Polo. “Quando o disco foi censurado, a gente percebeu que não tinha futuro para banda. Éramos de classe média baixa, alguns eram casados e tinham filhos. Precisávamos nos sustentar. Os meninos vieram falar como a gente e a gente falou: ‘Pode ir.’”

A partir de 2008, as novas gerações começaram a redescobrir e cultuar a banda graças à internet, o que deu gás para um breve retorno em 2014, com Ivinho ainda vivo. Agora, a banda a banda volta à carga total e com a mesma vontade de causar. “É até curioso a banda ter nascido numa ditadura e estar voltando numa época em que o conservadorismo está na presidência”, analisa o cantor.

“Quarenta e cinco anos depois, continuamos com a mesma pegada”, garante. Aposentado, Marco Polo, ao lado dos membros originais Paulo Rafael (guitarra e voz) e Almir de Oliveira (baixo) está se dedicando totalmente ao projeto e disposto a tocar até em festinha de aniversário. Sem perder a ternura, jamais.

Texto | Devana Babu


1974 | AVE SANGRIA

01. Dois Navegantes
02. Lá Fora
03. Três Margaridas
04. O Pirata
05. Momento na Praça
06. Cidade Grande
07. Seu Waldir
08. Hei! Man
09. Por Que?
10. Corpo em Chamas
11. Geórgia, a Carniceira
12. Sob o Sol de Satã

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1974 | PERFUMES Y BARATCHOS
(Bootleg Ao Vivo)


01. Grande Lua
02. Janeiro em Caruaru
03. Vento Vem (Boi Ruache)
04. Dia-a-dia
05. Geórgia, a Carniceira
06. Sob o Sol de Satã
07. Instrumental
08. Por Que
09. Hey Man
10. O Pirata
11. Lá Fora

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2019 | VENDAVAIS

01. O Poeta
02. Silêncio Segredo
03. Vendavais
04. Dia a Dia
05. Olho da Noite
06. Carícias
07. Sete Minutos
08. Ser
09. Sundae
10. Marginal
11. Em Órbita

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